2009/05/17

No tempo em que as pessoas cantavam...


Houve um tempo, há já muitos anos atrás, em que a quinta do meu avô tinha videiras. Por entre as falhas da minha memória, lembro-me que no Outono era a época das vindimas, e juntavamos toda a famelga para colher as uvas que o Verão tinha amadurecido. Lembro-me que metade das uvas iam para o cesto, lembro-me que a outra metade acabava nas barrigas da boa dúzia de bem dispostos que com escadotes passavam o dia entre as folhas, conversando ao longe com tesouras de poda na mão. Trabalhavámos aos pares, um em cima um em baixo numa logística improvisada por um grupo com média de idades não superior aos 14 anos.

Tal laboro, deixava o povo cansado, faminto de descanso mas satisfeito pelo convívio que a época das vindimas carregava com ela. Nós iamos carregando os largos cestos para a adega onde sabiamos que se ia passar, algumas horas mais tarde, um ritual sem preço.

Após um merecido descanso, patrocinados por um qualquer refrigerante, dirigiamo-nos para o grande lagar para iniciar a parte preferida de todos, enquanto os "grandes" colocavam as uvas em posição. Arregassávamos ou tiravamos as calças, respirávamos fundo, e literalmente marchavamos em cima dos frutos colhidos, ao som de cantigas , de ombros dados, de sorrisos nos lábios, meios enojados pela sensação de estar enterrados até às coxas no néctar que um dia alguém havia de beber, ainda com cachos que arranhavam os pés e bagos de uvas que teimavam em se deixar enliquidecer.

Desconheço a qualidade do vinho que ali era produzido. Mas como enólogo de recordações, digo que estes anos foram de vintage.

1 comment:

Inês Dias de Carvalho said...

...ok, está tudo explicado. a fermentação do mosto da uva, produto da dilaceração feita pelos pés, liberta compostos voláteis alcoólicos, que... são tóxicos.

agora já percebi... tadito... afinal n tens culpa nenhuma... foi das vindimas!